“O leito 33 se encontra em procedimento de rotina da UTI. É favor aguardar”.
Uma porta branca, pesada, protegida por crachás e seguranças me separava da minha mãe. “Procedimento de rotina”. Que rotina? Tinha terminado há pouco uma cirurgia de quase sete horas. Tocou o telefone do quarto, pulei da cadeira. “Está tudo bem”, disse o cirurgião. “Tiramos um nódulo do pâncreas, um pedaço do estômago, a vesícula e o duodeno. Ela está ótima, nenhuma intercorrência. Mas passou uma jamanta por cima dela. Vamos ver como se recupera.”
Minha mãe, viva, estava lá dentro da porta pesada. Olhei o relógio. 20h35. Procedimento de rotina. Quero entrar correndo, até o leito 33. Não posso. Passo os olhos em volta: ocos. Bolinhas brancas ocas no meio da testa. Tanta gente nessa porta de UTI. Recepcionistas vestidas socialmente, de saltinho. Toc toc. Enfermeiros, um ou outro, de azul. Médicos, jalecos brancos conversando com famílias: “Que seria da gente sem o senhor, doutor?” A mulher loira, de meia-idade, bem vestida, mostrava o celular aos parentes do marido: “Olha só que graça. Tão lindinha…” Burburinho branco – atonal. As vozes nem subiam nem desciam. Vozes de robôs. Ou seria eu o robô? Perto de um jovem, um senhor japonês, mudo, torcia as mãos. “Pai e filho”, pensei. “Provavelmente é a mãe que está lá dentro”. Mãe?
20h40, e o silêncio. Procedimento de rotina. Minha mãe. Olhei para o rosto do meu irmão, da irmã, da cunhada. Levantei da cadeira, e nada de chamarem. Devo ter baixado os olhos. Um deles me disse – qual deles? -, “Você quer que eu entre primeiro, Fabi, você não gosta dessas coisas…” “De jeito nenhum, nem pensar! Primeiro vou eu. Eu vou primeiro”. “Mas, e se você desmaiar lá dentro?” “Se desmaiar, desmaiei.”
Eu realmente detesto essas coisas: tenho aflição de agulha, as pernas bambeiam com sangue. Sofro muito com o sofrimento de quem quer que seja, e jamais seria médica ou algo assim: não aguento. Apesar disso, tinha aplicado injeções diárias de insulina nos braços e nas pernas da minha velhinha, por uma semana, sempre tentando pensar que estava picando um peito de frango. Se pensasse em qualquer tipo de dor, era desmaio na certa. Saía de casa às oito e meia, nove da noite, pegava o carro, estacionava, subia, beijava o rosto assustado, “Vamos lá, mãe?”, lavava as mãos religiosamente, procurava o algodão, desinfetava o local (“Onde você quer que eu aplique hoje?”), media a dose na caneta e… pimba: aplicava. Depois tinha de ir até a cozinha tomar um copo e meio de coca-cola com gelo - muito gelo -, para me recuperar do choque. Ela ia também, enchia um copo com água, misturava açúcar: “para o caso de ter uma hipo à noite”, dizia. E eu ia embora. “Boa noite”. Até o dia seguinte.
De repente, ela amarelou. Uma semana depois de ter ficado internada por três dias, com infecção urinária grave, uns cinco dias depois de começarem as aplicações de insulina. Era sábado, eu sentada ao lado dela no sofá. Olhou para o lado da janela – e o branco do olho azul estava cor de açafrão. Percebi então o rosto, as unhas – tudo amarelo. “Mãe, você amarelou! Dá pra perceber?” “Não…”, ela disse. “Mas é. Que será isso?” Icterícia, pensei. “Se não melhorar até amanhã, ligo pra sua médica, tá?” Ela, minha mãe, tinha horror a médicos, fugia dos remédios.
E a icterícia não melhorou… Vieram os exames - alteradíssimos. Liguei para a doutora. Suspeita de hepatite medicamentosa pelo antibiótico contra a infecção urinária. “Mas”, dizia a voz ao telefone, “vocês vão precisar ir ao pronto-socorro e fazer novos exames. As taxas dela são de uma obstrução, precisamos descartar essa hipótese”. Era noite de sexta-feira. Ela tinha resistido violentamente à internação no outro hospital, quase arrancando as sondas dos braços, dizendo ao enfermeiro frases atravessadas – minha cunhada me contou. Como é que eu ia conseguir tirá-la de casa outra vez, à noite, levar para o pronto-socorro? “Me dê um tempo, doutora”, eu disse. “Se ela tiver febre ou dor, prometo que a levo para o hospital ainda hoje. Se não, amanhã cedo vou com ela. Eu me responsabilizo”. E aí começou o meu drama, minha enorme interrogação: como tratar com delicadeza essas urgências? Proteger, ao mesmo tempo que cuidar? Apaziguar, e ao mesmo tempo socorrer? Salvar, sem alarmar. Quando esperar? Quando apressar?
Nove da noite. Quase nove. A porta ainda fechada. Que tempo era aquele, diante daquela porta? Estávamos, todos ali, suspensos do tempo.
Então, no dia seguinte, o pronto-atendimento, os exames de sangue, os exames de imagem. Na ultrassonografia do abdômen, a médica entrou, olhou, examinou, digitou e saiu, dizendo “a senhora aguarde um pouco, o laudo já fica pronto”. Nenhuma frase no estilo “está tudo bem, fique tranquila”. Eu, que entendo nada de nada, mas já fiz uns duzentos ultrassons, congelei dos pés à cabeça: à distância, me pareceu ver na tela uns nódulos que não deveriam estar lá. Mas me recompus, “Vamos, mãe?”. Já eram quatro da tarde, estávamos ali desde cedo. Ela só reclamava de fome.
Voltamos para o nosso pedacinho de PA: o leito, uma mesinha, uma cadeira. Comprei revistas, fui pegar café. Na sala da frente, uma senhora idosa, que tinha caído e quebrado alguma coisa – o ombro, o braço? – gritava, alucinadamente, “Socorro, me tirem daqui, querem me prender, querem me matar!” Ela tinha urinado no leito, o cheiro de urina picava as narinas. Respirei, o que pude respirar. Fiz um carinho na cabeça querida, disse “Tenha um pouco de paciência, mãe. Eles já devem vir com notícias”. “Quero ir para casa”, ela respondeu.
Algumas horas ainda se passaram. Do vidro da sala da enfermagem, que eu ia espiar de vez em quando, conseguia ver o médico de plantão, uma gentileza de criatura, olhando exames, respondendo aos enfermeiros, falando ao telefone. Já eram quase seis da tarde quando ele entrou no quartinho: “Saíram seus exames, D. Izabel, e parece que a icterícia não tem a ver com o antibiótico. A senhora vai precisar ficar internada e fazer uma tomografia. Liguei para o Dr. Carlos Eduardo, que sua médica indicou. Ele vai passar no quarto mais tarde e explicar melhor tudo. Agora, a senhora vai tomar um líquido de contraste e fazer a tomo às nove da noite.”
Difícil descrever a reação dela. Arregalou para ele os olhos mais azuis e mais desesperados, os ombros caídos. Disse “Não, doutor, não faça isso comigo. Eu vou para casa hoje, prometo que amanhã volto, bem cedo, e me interno, faço esse exame. Me deixe ir embora hoje. Eu não trouxe nada agora. Prometo que volto amanhã e faço tudo o que me mandarem…” O Dr. Fabio (esse era o nome dele, tenho de lembrar, é quase o meu – “o nome que você teria se fosse homem”, minha mãe sempre me disse) se condoeu da situação, tenho certeza que sim, e ainda tentou consolá-la, umas palavras de incentivo, um carinho no ombro. Mas, se era preciso internar, o que fazer? Choramos muito juntas, abraçadas. Justo ela, minha mãe que nunca chora. “Me leva pra casa, Fabi”, ela dizia. Eu encostei a cabeça dela no meu ombro: “To aqui, mãe. Vamos fazer esse exame, precisamos ver do que se trata… Vai ficar tudo bem…”
Avisei a todos, peguei os papéis da internação, subi as escadas. Assinei termos de responsabilidade. Fui com ela para o quarto. Tive medo. Desse ponto em diante, nem me lembro muito bem. Acho que alguém chegou - meu irmão? irmã? -, e que fui para casa dar um beijo no meu filho, pegar umas roupas? Fui eu quem dormiu lá nessa noite? Não sei mais… Só sei que, quando voltei, ela já tinha feito o exame, Dr. Carlos já tinha passado e estávamos, então, esperando o resultado da tomografia. Não era dia nem noite. Para mim, era apenas o quarto: só um espaço, fora do tempo.
Nem uma semana depois, olhávamos para uma porta branca que nunca se abria. Dr. Carlos passou – ele também, tão alto, de jaleco branco… -, disse algumas palavras, falou da cirurgia. “Tiraram o nódulo do pâncreas, desobstruíram a passagem da bile, reconstruíram o sistema digestivo. Vamos, agora, ver a recuperação… Ela está sedada e entubada, mas resistiu bem.”
O horário de visitas da UTI à noite, sabem?, terminava às nove horas. Já eram nove. Nove e cinco. Por que não nos deixavam entrar?
Foi então que eu ouvi, de longe, alguém dizer “Familiares de Maria Izabel Carelli. Podem retirar o crachá. Leito 33. Até o fim do corredor, à direita”. Minha cunhada, com o crachá na mão, tentava negociar comigo uma trégua nos meus deveres de filha: “Tem certeza de que você quer ir primeiro? Não quer que eu vá e te conte como está? Você não vai se sentir mal? Não vai desmaiar?” “Eu vou primeiro. Deixa. Eu vou”, respondi. “Eu preciso ver. Preciso.”
Como explicar tudo ali para ela? Eu tinha internado minha mãe. Eu tinha ouvido com ela pela primeira vez o diagnóstico de nódulo cirúrgico no pâncreas. Eu tinha conversado com o cirurgião sobre o procedimento: quando? como? onde? Eu tinha dormido com ela na noite anterior à operação. E, mais que tudo, eu tinha dito a ela, na porta do elevador para o centro cirúrgico, “Firme e forte, mãe, aguenta firme, a gente está aqui fora te esperando. Firme e forte”. Eu tinha prometido que estaria esperando por ela aqui fora. Eu precisava estar lá.
Peguei o crachá, coração aos pulos, e disparei porta adentro. “Lavar as mãos, lavar bem as mãos. Primeiro as palmas, depois as costas. Entre os dedos. Debaixo das unhas. Punhos.” Tentava organizar meu pensamento numa logística de UTI. “Agora, álcool gel. Cadê o álcool gel?” E andava, andava, dois corredores, um posto de enfermagem. Leito 33. Leito 33? Onde diabos? Passo disparado, coração disparado. Enfermeiros de azul. Pias. Alguns rostos. Curva à direita, novo posto de enfermagem. Leito 33. Parei. Uma UTI com quartos separados. Nunca tinha visto uma assim.
Da porta, meio aberta, vi minha mãe. Deitada, sedada, respirando pelo aparelho num compasso ritmado e lento. Cheguei perto, fiz um carinho naquela testa. “To aqui, mãe. To aqui. Falei que a gente ia estar te esperando. Estamos aqui. E você aguentou firme e forte…” Ela estava dormindo… Precisava, talvez, de um beijo de príncipe para acordar?
Fiquei mais dois ou três segundos. Ainda olhei para trás antes de ir, joguei um beijo da porta, os olhos cheios (sou chorona demais, problema sério, não há rímel à prova d’água que dê jeito). Minha velhinha estava ali, viva. Tinha aguentado firme.
Fui saindo depressa, de cabeça baixa. Na sala de espera, abracei minha cunhada chorando muito, aos soluços. Desabafei. Muito difícil ver uma criatura tão amada naquela situação. Nesse período todo, tenho me perguntado muitas vezes: como é que se consegue manter a serenidade diante do sofrimento de quem se ama? Como fazer para manter a calma? Porque serenidade é o de que mais se precisa - com os outros, com a gente mesmo…
Mas o que queria contar mesmo eu ainda não contei. Nos seis dias que passei entrando e saindo da porta branca da UTI, à tarde e à noite, eu vi muita coisa, mesmo desejando ver nada. Entrava e saía de cabeça baixa, escondendo os olhos, procurando respeitar a privacidade dos que estavam naquele lugar e dos seus acompanhantes, até mesmo de médicos e enfermeiros. Mas eu tinha de atravessar a UTI inteira para ver minha mãe, e o olhar às vezes escapava: uma porta entreaberta. Um médico de branco a conversar com o familiar de um doente. Um ruído de televisão. Pares de olhos me observando quando eu passava. Eram pessoas que estavam ali. Um homem seminu, peludo, com a camisola do hospital meio jogada e as pernas abertas, ouvindo o Jornal Nacional, que virava para mim uma raiva bruta, sexual, no olho preto. Um senhorzinho entubado e inconsciente, rodeado de pessoas numa baia de cortinas. Um jovem, quase o rapaz na bolha de plástico, com um “capacete de oxigênio” digno do Darth Vader – embora branco… Uma senhora com a acompanhante, conversando animadamente. Sinhás de tempos distantes, troncos de árvores cortadas, trogloditas pré-históricos, viajantes do espaço. Médicos e enfermeiros de azul. Minha mãe. E o tu-tuu, tu-tuu, tu-tuu dos monitores de batimentos cardíacos, numa sinfonia estranha, de ensurdecer.
Todos gente, viajando numa bolha surreal por trás da porta branca, descolados de espaço e de tempo. Vozes de metal. E os aparelhos, tantos aparelhos. Como sobreviver num lugar assim? Inferno? Paraíso?
Nos seis dias em que minha mãe esteve na UTI, não consegui dormir em nenhum. Tinha pesadelos terríveis, e tantas vezes me senti culpada por deixar que ela ficasse ali, sozinha, por detrás da porta branca, com muitas máquinas monitorando pressão, respiração, batimentos cardíacos e taxas sanguíneas, mas sem ninguém para segurar aquelas mãos. E se ela acordasse no meio da noite? E se tivesse medo? E, nessas horas, quis demais que tivessem me cortado e suturado, que tivessem tirado um pedaço do meu estômago e do meu pâncreas, que tudo aquilo tivesse acontecido comigo. Que sou, talvez, um pouco mais calma do que ela. Que converso, à noite (e semanalmente, no divã…), um pouco mais com os meus monstros, negociando com eles as nossas divergências. E que durmo, mergulhada e descabelada, no amor daqueles que, de carne e de osso, de perto e de longe, grandes e pequenos, velam meu sono (“Não fica triste, mãe. Vou te dar um carinho…”, diz o meu filho de três anos…). Amores que são raras gotas do divino dadas espontaneamente a mim, e por isso mesmo mais inteiras, mais intensas - mais vivas.
“Between heaven and earth”. Inferno, ou paraíso? Morte, ou vida? Depois de ultrapassada a porta branca, fronteira que nos separa a todos daquele universo singular, levava os dias a me perguntar como era possível que, em sã consciência, houvesse pessoas que escolhessem trabalhar ali. Atravessava a Paulista, já se vestindo de Natal, pensando no Dr. Carlos, o clínico da minha mãe. Ô, homem preocupado. Ligado. Ele não tem nada de insensível… No entanto, é médico de UTI… Naquele lugar estavam os seres humanos nas condições mais precárias que já avistei. E ele enfrentava, quase todos os dias, o troglodita, o astronauta, a senhora de engenho e tantos outros… Olhava e tocava a DOR… E saía vivo? São? Inteiro? (ou “só o pó”, como dizia às vezes…) Sem nem um copo de coca-cola com gelo – muito gelo -? “Jingle bells…”
Quem nunca viveu uma UTI não sabe o que ela significa. Eu também não sabia, até que me foi permitido entrar lá. Algumas vezes, no meio da tarde, atravessava os corredores alvos e, no quartinho com janela que era o leito 33 (sim, minha mãe tinha uma janela para a vida!), via de pé o Dr. Carlos, jaleco branco, conversando com ela… As máquinas continuavam lá – tu-tuu, tu-tuu, tu-tuu -, mas eu conseguia surpreender nela um esboço de sorriso, nele o despertar de uma piada, um gesto de carinho, um abraço. Eu dava um passo para trás, para não rasgar o véu da delicadeza… – e ele me via e me dizia “Não não não não, vem pra cá, fica com ela, vou deixar vocês…”.
Numa noite escura, as luzes do quartinho apagadas, já quase no final da visita, Dr. Paulo, o cirurgião, entrou por trás de mim pela portinha estreita, me deu um beijo no rosto – “Oi oi oi…” -, depois se postou ao lado do leito, beijou as mãos da minha velhinha, passou as mãos pelos cabelos dela, olhou fundo nos olhos azuis e perguntou: “Como a senhora está?” Era a véspera da alta da UTI. “Estou um pouco melhor, doutor”, ela respondeu. “Amanhã a senhora vai para o quarto”. Minha mãe abriu um sorriso, olhou para o Dr. Paulo de um jeito frágil (coisa rara, ela é fortona…) e disse: “o senhor sabe, passo os dias e noites aqui pensando no que vou fazer quando sair daqui. Porque, entende?, quero fazer algo de útil… Desde que eu me aposentei, vivi só para os filhos. E valeu a pena, sabe?, foi muito bom. Mas agora eles foram embora, e eu fiquei sem ter o que fazer. Tem os meus netos – eu ADORO os meus netos, todos! -, mas não tenho mais energia para ficar com eles… E aí penso em fazer um trabalho voluntário, cuidar de crianças carentes… Mas acho que não vou aguentar… Então, acho que vou escrever…”- e ela olhou para o médico com um sorriso -, “Eu sempre gostei de escrever, o senhor sabe? Vou escrever um conto sobre como é enfrentar uns dias na UTI…” Ela tinha acabado de passar por uma cirurgia enorme, e queria ser “útil”. E foi, durante esse tempo, a sensação da Terapia Intensiva: irônica, espirituosa, “ligada”, perceptiva. “A senhora é fogo, D. Izabel…”, dizia o Dr. Carlos, levantando os olhos para mim com aquela expressão de “quem é que pode com ela?”…
Nessa noite, saí do hospital com lágrimas nos olhos e, dirigindo sozinha pela Paulista afora, tive de ligar para o celular do Dr. Paulo. Agradecer a ele, não apenas pela competência, enorme, mas também pela leveza. Pela alegria (quem nunca ouviu o Dr. Paulo gargalhar não sabe o que é ser alegre sem afetação, e sem tampouco perder a seriedade fundamental de alguns momentos). E a resposta dele: “Aquela conversa de hoje foi tudo”.
Na tarde do dia seguinte, minha mãe saiu da UTI. Não pela porta branca: esta, quem atravessou naquele dia fui eu, como em todos os outros, deixando para trás, naquele momento, o Neanderthal do olho preto, o soldado intergalático, a senhora da sala de estar. A família oriental e a avó loura e jovem da sala de espera. Os saltinhos das recepcionistas. O famigerado crachá eletrônico. A sinfonia esquisita da ultramoderna aparelhagem médica. Inferno, ou paraíso? Sonho, ou pesadelo?
Acho que eu também tive alta naquele dia. Abduzida, fui cuspida de novo no mundo e, apesar de ter experimentado, por dias e noites intermináveis, todo o choro e ranger de dentes daquela bolha estranha, talvez tenha percebido ali algo que nem o troglodita, nem o astronauta, nem a senhora e sua “serviçal” tenham visto. Não os aparelhos. Nem a assepsia. Não a tecnologia, nem tampouco a (inegável, ainda bem!) eficiência.
Na mesma noite, dormindo no hospital e olhando a internet, encontrei na rede um artigo do Dr. Carlos – ele e o Dr. Paulo, como eu, também são professores doutores, chiquérrimos! (muito mais chiques do que eu, claro…) No artigo, a respeito da chamada “Medicina Baseada em Evidências” (pelo que entendi, uma espécie de “vejo e penso, logo existe e será tratado assim” da ciência médica), ele diz:
“A MBE extrai sua força persuasiva da idéia subjacente a toda matriz cultural da sociedade ocidental moderna: a de que a prática científica é o modelo de prática racional. Baseando-se nas evidências científicas, a MBE se torna a maneira mais racional de fazer medicina. Como afirma Cronje: ‘A idéia de ação racional existe porque achamos útil distinguir ações baseadas na razão de ações baseadas em emoções, impulsos ou escolhas aleatórias - racionalidade, então, é o que protege nossas ações da arbitrariedade, subjetividade, viés e erro.’”
Mas, ele continua,
“A hierarquização dos estudos, a quase aversão ao efeito placebo e as tentativas de quantificação do imponderável (experiências individuais dos pacientes, tipos de narrativas, impacto da doença na vida pessoal etc.) são facetas de uma racionalidade forçada ao limite que, ao exercer um papel para o qual não foi desenvolvida, geram tensão e ansiedade em ambos os lados da mesa do consultório.”
Ao ler isso, de olhos bem abertos, me lembrei do trecho do texto de Gruzinski de que tanto gosto:
“Prigogine, em Les Lois du chaos, cita Popper, que ‘fala de relógios e nuvens. A física clássica interessava-se antes de tudo pelos relógios; a física de hoje, mais pelas nuvens’. Ele explica que a precisão dos relógios continua a obcecar nosso pensamento, levando-nos a acreditar que se pode atingir a precisão dos modelos particulares, e praticamente únicos, estudados pela física clássica. Mas o que predomina na natureza e no nosso ambiente é a nuvem, forma desesperadamente complexa, imprecisa, mutável, flutuante, sempre em movimento.”
Não somos relógios, nem nuvens. Mas somos parte de uma natureza complexa, imprecisa, mutável, flutuante, sempre em movimento. Todo organismo funciona segundo um padrão. Toda doença tem um padrão. Mas padrões são generalizações, construídas pela ciência.
Para além da porta branca, eu não vi números. Vi histórias. Imponderáveis narrativas de época, de terror, de ficção científica, de comédia, de drama, com finais igualmente surpreendentes. Tratados com os mesmos aparelhos, quantificados sob os mesmos critérios, mas completamente diversos em sua constituição singular: a sinhá, o troglodita, o astronauta. Minha mãe.
Também únicos são os médicos que cuidaram dela, e que me fazem, hoje, rever um pouco a total descrença na ciência médica que desenvolvi ao longo dos anos. E não apenas porque são profissionais habilitados, competentes, sabedores do que fazem. Mas, principalmente, porque têm alguma noção de que são gente. Gente que cuida de gente.
Saí da porta branca mais dura, calejada, mas mais esperançosa. Não na medicina: nos médicos. Naqueles que acreditam numa humanização profunda de sua prática - porque, afinal, tratam pessoas. Dão nó em pingo d’água. Buscam “a fórmula do acaso”. São observadores de nuvens.
Depois de tudo o que passamos, depois do presente da vida, que desafia todas as ponderações, só me resta aqui registrar minha homenagem aos que “doeram” conosco essa história: filhos, familiares, companheiros, enfermeiros, amigos, funcionários. A senhorinha oriental que tinha o marido internado a dois quartos do nosso. A esposa solitária que cuidava do marido operado sem avisar ninguém. Os garçons do hospital: “bom dia, como a senhora está hoje?” E, a mais especial, a esses médicos maravilhosos e seu instrumento mais revolucionário. Eles têm coração. Between heaven and earth.
Fabiana,
ResponderExcluirNunca te vi chorar no hospital, hehe. Também não vou contar o quanto esse texto me emocionou para não encher de pieguice esse lindo blog.
Acho que você tirava 10,0 (dez) de redação, né?
Beijo, tamos aí....
Ihhhhhhh, Doc..... Os fortes também choram (minha mãe, mais ou menos...), e os brutos também amam (mas não o Neanderthal do olho preto - esse, tenho minhas dúvidas...). Eu só escondo bem, por causa do rímel preto: fica uma desgraça! :)
ResponderExcluirVocê, mais do que outros, sabe o quanto é verdadeira, nos detalhes mais pequenos, essa história surreal.
Um beijo grande, do coração.
Fabiana
Sim, ela só tirava dez de redação, tão merecidos, tradutora de sentimentos novos em rabiscos de Bic, dia cheio de dia em 45 minutos semanais de criação forçada, inoculada desde cedo contra o cinismo que hoje cala quem então dividia.
ResponderExcluir...A menina por trás do cabelo e sua folha de papel.
ResponderExcluirComo a rosa do Pequeno Príncipe, lembra?, mostrando seus minúsculos espinhos: "São as minhas garras, sabe?, para me proteger dos carneiros"...
A porta branca é como a luz do sol, que revela suas nuances coloridas quando atravessada pelas gotículas molhadas da atmosfera. Ainda bem que além dessa porta existia não só os mais diferentes pacientes com seus comportamentos, mas também médicos poetas e espiritualizados, uma senhora que passou a enxergar bem mais longe e uma menina-poeta que viu sua coragem médica florescer. Parabéns a todos, Izabel, Fabiana, Carlos Eduardo, Paulo e equipe, que como uma família deram um passo a mais em direção à vida.
ResponderExcluirFabizinha linda, voce pode sempre contar comigo, sempre! O seu relato me comoveu demais! Estou aqui escrevendo o meu comentário e ouvindo o Lenine, tão bonito! Sorte da sua mãe ter um filha tão doce! Sorte a minha ter essa amiga maravilhosa! São essas coisas que valem na vida é só o que interessa! Beijos meu amor, muitos!
ResponderExcluirA doença - parece incrível - me trouxe lágrimas mas também presentes, Bi: presenças. Inesquecíveis. Preciosas. Aqueles que interessam, né, querida? Meus amores, tão amados, mesmo que às vezes no silêncio.
ResponderExcluirVocê é um deles, sempre.
Beijos!!!
Obrigada!
Só uma pergunta: o hospital era particular? Sua mãe é conveniada? Plano Top?
ResponderExcluirPorque pelo seu emociante relato, ela teve tratamento vip de todos, mesmo dos médicos (claaaaro,eles são assim humanos e atenciosos também com o seu zé pedreiro, negro e pobre, que internou pelo sus)
Olha, Anônimo, minha mãe tinha plano de saúde, sim, que não era top, mas era bom. Pago com muito esforço da parte dela, diga-se, que trabalhou muito e a vida inteira pra poder conseguir, um dia, ter direito a esse privilégio. Ao qual muitos - a grande maioria - não conseguem aceder, infelizmente, sabemos disso.
ExcluirMas, de verdade? O que aconteceu ali não teve a ver com dinheiro, profissão, cor de pele ou nome, Maria, João ou José. Há coisas muito maiores em jogo. Questões culturais e epistemológicas; filosóficas mesmo (vivemos hoje o que poderíamos chamar, a expressão não é minha, de “morte da clínica”, parafraseando o Foucault de “O nascimento da clínica”, ou seja, uma cultura em que um tipo de abordagem do ser humano e do corpo está morrendo em função de outra, muito mais tecnologizada, mas essa história é compriiiiiiiiiiiiiidaaaaa...); e questões éticas, profundas.
Éticas, não no sentido moral, de coisas legaizinhas e coisas ruinzinhas, de ser bonzinho ou mauzinho porque fulano ou beltrano é pobre, preto ou pedreiro, como vc diz. Mas éticas no sentido pessoal (pessoal no sentido de uma vivência própria da cultura), de assumir ou não certas ações diante de certos fatos.
A ética que envolve esses médicos de que falo vai além de qualquer condição material. Está imersa nelas, claro, mas vai além. E, olha, conheço vários que são humanos e atenciosos, sim, com o zé pedreiro, negro e pobre, que internou pelo sus. Eles estão por aí. Cuidado! Com eles e com os seus (não deles!) preconceitos e generalizações!
Se quiser se aprofundar no assunto, leia estes artigos do Prof. José Ricardo Ayres, da FMUSP, médico do SUS e que atende o zé pedreiro, negro e pobre como atenderia D. Maria Izabel, minha mãe, no SUS ou no melhor hospital da América Latina.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902004000300003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232005000300013
Abraços e obrigada pelo comentário
Você pelo menos reconhece que é 'privilégio'.
ResponderExcluirFui no google e vi que o Prof. José Ricardo Ayres é professor de Medicina Preventiva, então está explicado porque ele atende no SUS. Difícil ele atender em hospitais particulares, já que não oferecem essa especialidade.
A medicina no brasil está podre, por tudo isso que vc falou até lembrando foucault, mas vc consegue escrever um post cor-de-rosa.
Branco, Anônimo. Branco. Como aquela porta.
ExcluirSanguinolento, cheio de gritos gemidos máquinas bipando, cheiro de fezes, de desinfetante, de urina.
Pense menos, observe mais, *viva* mais. Cada história é uma história - sem generalizações.
Nem todos os verdadeiros dramas são trágicos. Nem todas as comédias são edificantes. Nem toda ironia é corrosiva. Nem toda doçura é bondosa. Nem toda humanização é ausência de preconceito.
Você errou de cor, na minha opinão.
E me lembrou uma trilogia de filmes de um polonês genial, K. Kieslowski, que também relaciona cores a conceitos históricos e morais: “A liberdade é azul”, “A igualdade é branca”, “A fraternidade é vermelha”, todos produzidos entre 1993-1994. Já peguei todos, vou rever.
Bom domingo